Sobre Jequitibás e Eucaliptos – Amar

Rubem Alves

Pra lhes dizer a verdade, não sei onde meu pai arranjou aquele almanaque, velharia do século passado, e que catalogava os municípios das Minas Gerais, um a um. Tenho de confessar que, igual àquele, ainda não vi outro, tão bem arranjado e consciente das coisas que deviam ser preservadas para a posteridade. Tanto assim que, além de exaltar as belezas do lugar (e que lugar é este que alguma beleza não possuir ?) e as excelências do clima, passava a descrever as excelências do povo, listando os vultos mais  ilustres, a começar, como era de se esperar, pelos capitalistas, fazendeiros e donos de lojas, passando então aos médicos, boticários, bacharéis e  sacerdotes, sem se esquecer, ainda que no fim, das mestres-escolas. Lá, bem no começo, seguindo a ordem alfabética, estava Boa Esperança, terra de meu pai, e ele ajeitou os óculos para ver se descobria naquele registro do passado a informação de algum antepassado ilustre, quem sabe alguma glória de que pudesse gabar ! E o dedo indicador foi percorrendo o rol dos importantes, um a um, pelo sobrenome, pois que de primeiro nome todas as memórias já tinham sido apagadas. Até que parou. Lá estava. Não podia haver dúvidas. O sobrenome era o mesmo: Espírito Santo. Profissão: Tropeiro? Isto mesmo. E, com a tropa de  burros e o barulho imaginário dos sinos da madrinha, trilhas da serra de Boa Esperança que o Lamartine Babo cantou, foram-se também as esperanças de um passado glorioso.

Que aconteceu aos tropeiros? Meu pai se consolou dizendo que, naquele tempo, tropeiro era dono de empresa de transportes. O fato entretanto, é que o tropeiro desapareceu ou se meteu para além da correria do mundo civilizado, onde a vida anda ao passo lento e tranqüilizante das batidas quaternárias dos cascos  no chão …

E aí comecei a pensar sobre o destino de outras profissões que foram sumindo devagarinho. Nada parecido com aqueles que morrem de enfarte, assustando todo mundo. Aconteceu com elas o que acontece com aqueles velhinhos de quem a morte se esqueceu, e que vão aparecendo cada vez menos na rua, e vão encolhendo, mirrando, sumindo, lembrados de quando em vez pelos poucos amigos que lhes restam, até que todos morrem e o velhinho fica, esquecido de todos. E quando morre e o enterro passa, cada um olha para o outro e pergunta: “Mas, quem era este?” Não foi assim que aconteceu com aqueles médicos de antigamente, sem especialização, que montavam a cavalo, atendiam parto, erisipela, prisão de ventre, pneumonia, se assentavam para o almoço, quando não ficavam para pernoitar, e depois eram padrinhos dos meninos e não tinham vergonha de acompanhar o enterro? Pra onde foram eles? Quem quer ser médicos como eles? Também o boticário, um dos homens mais ilustres e lidos da cidade, presença cívica certa ao lado do prefeito e do padre, pronto a discursar quando o bacharel faltava, tendo sempre uma frase em latim para ser citada na hora certa … E o boticário fazia as suas poções, e a gente lavava, em água quente, os vidros vazios em que ele iria por os seus remédios. E me lembro também do tocador de realejo que desapareceu, eu penso, porque com o barulho que se faz nas cidades, não há ninguém que ouça as canções napolitanas que a maquineta  tocava. E me lembro também do destino triste do caixeiro-viajante, cujo progressivo crepúsculo e irremediável solidão foram descritos por Arthur Miller, em A Morte do Caxeiro-Viajante.

Foi o tema que me deram, a “formação do educador”, que me fez passar de tropeiros a caixeiros. Todas, profissões extintas ou em extinção.

Educadores, onde estarão? Em que covas terão se  escondido? Professores há aos milhares. Mas professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é profissão; é vocação. E toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança.

Profissões e vocações são como plantas. Vicejam e florescem em nichos ecológicos, naquele conjunto precário de situações que as tornam possíveis e – quem sabe? – necessárias. Destruído esse habitat, a vida vai se encolhendo, murchando, fica triste, mirra, entra para o fundo da terra até sumir.

Com o, advento da indústria como poderia o artesão sobreviver? Foi transformado em operário de segunda classe, até morrer de desgosto e saudade. O mesmo com os tropeiros, que dependiam das trilhas estreitas e das solidões, que morreram quando o asfalto e o automóvel chegaram. Destino igualmente triste teve o boticário, sem recursos para sobreviver num mundo de remédios prontos. Foi devorado no banquete antropofágico das multinacionais. E os médicos-sacerdotes? Conseguiram sobreviver, em parte porque as pessoas ainda acreditavam nos chás, cataplasmas, emplastos, simpatias e rezas de comadres e curandeiras. Foi em parte isto que impediu que se amontoassem nos consultórios do único médico do vilarejo. Além disto, o tempo durava o dobro. Por outro lado, a ausência dos milagres técnicos fazia com que as soluções fossem mais rápidas e simples. Bem dizia a sabedoria popular: “O que não tem remédio, remediado está”. Também a morte era uma solução.

E o educador? Que terá acontecido com ele?.Existirá ainda o nicho ecológico que torna possível a sua existência? Resta-lhe algum espaço? Será que alguém lhe concede a palavra ou lhe dá ouvidos? Merecerá sobreviver? Tem alguma função social ou econômica a desempenhar?

Uma vez cortada a floresta virgem, tudo muda. É bem verdade que é possível plantar eucaliptos, essa raça sem-vergonha que cresce depressa, para substituir as velhas árvores seculares que ninguém  viu nascer nem plantou. Pra certos gostos, fica até mais bonito: todos enfileirados, em permanente posição de sentido, preparados para o corte. E para o lucro. Acima de tudo, vão-se os mistérios, as sombras não penetradas e desconhecidas, os silêncios, os lugares ainda não  visitados. O espaço se racionaliza sob a exigência da organização. Os ventos não mais serão cavalgados por espíritos misteriosos, porque todos eles só falarão de cifras, financiamentos e negócios.

Que me entendam a analogia.

Pode ser que educadores sejam confundidos com professores, da mesma forma como se pode dizer: jequitibá e eucalipto, não é tudo árvore, madeira? No final, não dá tudo no mesmo?

Não, não dá tudo no mesmo, porque cada árvore é a revelação de um habitat, cada uma delas tem cidadania num mundo específico. A primeira, no mundo do mistério, a segunda, no mundo da organização, das  instituições, das finanças. Há árvores que têm uma personalidade, e os antigos acreditavam mesmo que possuíam uma alma. É aquela árvore, diferente de todas, que sentiu coisas que ninguém mais sentiu. Há outras que são absolutamente idênticas umas às outras, que podem ser substituídas com rapidez e sem problemas.

Eu diria que os educadores são como as velhas árvores. Possuem uma face, um nome, uma “história” a ser contada. Habitam um mundo em que o que vale é a relação que os liga aos alunos, sendo que cada aluno é “entidade” sui generis, portador de um nome, também de uma “história”, sofrendo tristezas e alimentando esperanças. E a educação é algo pra acontecer neste espaço invisível e denso, que se estabelece a dois. Espaço artesanal.

Mas professores são habitantes de um mundo diferente, onde o “educador” pouco importa, pois o que interessa é um “crédito” cultural que o aluno adquire numa disciplina identificada por uma sigla, sendo que, para fins institucionais, nenhuma diferença faz aquele que administra. Por isto mesmo professores são entidades “descartáveis”, da mesma forma como há canetas descartáveis, coadores de café descartáveis, copinhos plásticos de café descartáveis.

De educadores para professores realizamos o salto de pessoa para funções.

É doloroso mas é necessário reconhecer que o mundo mudou. As florestas foram abatidas. Em seu lugar, eucaliptos.

A ética religiosa cristã clássica sempre foi muito clara ao indicar que a moralidade de uma ação se baseia na intenção. Em outras palavras, o que define a identidade da pessoa, sob o ponto de vista desta ética religiosa, não é o que ela objetivamente faz, mas antes suas disposições íntimas … Com o advento do utilitarismo, entretanto, tudo se alterou. A pessoa passou a ser definida pela sua produção: a identidade é engolida pela função. E isto se tornou tão arraigado que, quando alguém nos pergunta o que somos, respondemos inevitavelmente dizendo o que fazemos … A pessoa praticamente desaparece, reduzindo-se a um ponto imaginário em que várias funções são amarradas.

É isto que eu quero dizer ao afirmar que o nicho ecológico mudou. O educador, pelo menos o ideal que minha imaginação constrói, habita um mundo  em que a interioridade faz uma diferença, em que as pessoas se definem por suas visões, paixões, esperanças e horizontes utópicos. O professor, ao contrário, é funcionário de um mundo dominado pelo Estado e pelas empresas. É uma entidade gerenciada, administrada segundo a sua excelência funcional, excelência esta que é sempre julgada a partir dos interesses do sistema. Freqüentemente o educador é mau funcionário, porque o ritmo do mundo do educador não consegue o ritmo do mundo da instituição… Não dispomos de critérios para avaliar esta coisa imponderável a que se dá o nome de educação…

E é aqui que se encontra o problema: se não dispomos sequer de critérios para pensar institucionalmente a educação, como pensar o educador? A formação do educador: não existirá aqui uma profunda contradição; Plantar carvalhos? Como, se já se decidiu que somente eucaliptos sobreviverão?

Plantar tâmaras, para colher frutos daqui cem anos?

Como, se já se decidiu que todos teremos de plantar abóboras, e serem colhidas daqui a seis meses?

O educador é um ausente. Nosso espaço funcional, gerenciado, torna possível falar sobre funcionários definidos pela instituição. Mas ele não permite que se fale sobre coisa alguma que se move num espaço definido pela liberdade. O  educador tem assim, o estatuto de um conceito utópico, de existência prática proibida e, por isto mesmo, existência teórica impossível. E é por isto que as ciências silenciaram sobre ele.

A polaridade entre educadores e professores não instaura uma dicotomia entre duas classes de pessoas, umas inexistentes e heróicas, outras existentes e vulgares, mas antes uma dialética que nos racha a todos, pelo meio, porque todos somos educadores e professores, águias e carneiros, profetas e sacerdotes, reprimidos e repressores.

Não é por acidente, então que os professores sejam aqueles que sonham com os educadores, e os funcionários tenham visões de liberdade, e os animais domésticos façam poemas e tenham loucuras sobre o selvagem que habita cada um deles.

Não se trata de formar o educador, como se ele não existisse. Como se houvesse escolas capazes de gerá-lo, ou programas que pudessem trazê-lo à luz.

Eucaliptos não se transformarão em jequitibás, a menos que em cada eucalipto haja um jequitibá adormecido. O que está em jogo não é uma técnica, um currículo, uma graduação ou pós-graduação.

Nenhuma instituição gera aqueles que tocarão as trombetas para que seus muros caiam.

O que está em jogo não é uma administração da vocação, como se os poetas, profetas, educadores, pudessem ser administrados.

Necessitamos de um ato mágico de exorcismo.

Nas histórias de fadas é um ato de amor, um beijo, que acorda a Bela Adormecida de um sono letárgico, ou o príncipe transformado em sapo.

Diz-nos Freud que a questão decisiva não é a compreensão intelectual, mas um ato de amor. São atos de amor e paixão que se encontram nos momentos  fundadores de mundos, momentos em que se encontram os revolucionários, os poetas, os profetas, os videntes. É depois, quando se esvai o ímpeto criador, quando as águas correntes se transformam primeiro em lagoas, depois em charcos, que se estabelece a gerência, a administração, a burocracia, a rotina, a racionalização, a racionalidade.

A questão não é gerenciar o educador.

É necessário acordá-lo.

E, para acordá-lo, uma experiência de amor é necessária.

Já sei a pergunta que me aguarda:

“- E qual é a receita para a experiência de amor, de paixão?

Como se administram tais coisas?

Que programas as constróem?”

E aí eu tenho de ficar em silêncio, porque não tenho resposta alguma.

Na verdade, quando nos propomos tais perguntas estamos, realmente, nos questionando: Por que não ficamos grávidos e grávidas com o educador? Por que não somos consumidos pela paixão, por mais irracional que ela seja ?

Ah! Como a paixão é doce. Somente os apaixonados sabem viver e morrer. Somente os apaixonados, como Dom Quixote, vislumbram batalhas e se entregam a elas. A paixão é o segredo do sentido da vida. E que outra questão mais importante poderá haver ? Dizia Camus que o único problema filosófico realmente sério é “julgar se a vida é digna ou não de ser vivida”.

A um discurso que não é uma expressão de amor, falta o poder mágico de acordar os que dormem, falta o poder mágico para criar.

E eu pensaria que o acordar mágico do educador tem então de passar por um ato de regeneração do nosso discurso, o que sem dúvida exige fé e coragem: coragem para dizer em aberto os sonhos que nos fazem tremer.

A formação do educador? Antes de mais nada: é necessário reaprender a falar.

O fato é que todos aqueles que ainda têm a ousadia de falar e escrever, acreditam, ainda que de forma tênue, que o seu falar faz uma diferença.

Isto é de crucial importância para o educador, e desta crença depende o seu sono e o seu acordar. porque, com que instrumentos trabalha o educador? Com a palavra.

O educador fala. Mesmo quando o seu trabalho inclui as mãos, como o mestre que ensina o aprendiz a moldar a argila, ou o cientista que ensina o estudante a manejar o microscópio, todos os seus gestos são acompanhados de palavras. São as palavras que orientam as mãos e os olhos.

E agora eu convidaria esta pessoa singular, que só tem nas mãos a palavra, a um ato de exorcismo e quebra de feitiço. É necessário lembrar, recuperar a memória dos momentos em que o mundo foi instaurado. Lá, quando a criança, com seus olhos  virgens, olha para o todo amorfo e inominável ao seu redor, e a desordem gira em torno dela, até que a palavra lhe é dirigida, dando nomes, impondo ordem, fazendo nascer um mundo… “No princípio era a Palavra …” Não qualquer palavra, porque as palavras eficazes são aquelas que partem daqueles que são os outros significativos, aqueles que têm, com a criança, um destino comum, aqueles para quem a criança  importa, porque ela será uma companheira numa mesma habitação, seja casa, seja vila, seja jornada … Jornadas também são habitações. E ali descobrimos que “cada pessoa que entra em contato com a criança é um professor que incessantemente lhe descreve o mundo, até o momento em que a criança é capaz de perceber o mundo tal como foi descrito” (Carlos Castañeda, Journey to Ixtlan, New York, Simon e Schusetr, 1972, p.8): professores que não sabem que são professores, sem créditos em didática nem conhecimento de psicologia. Só dispõem de palavras e do destino comum. E sem saber como, e sem ter nenhuma teoria sobre como é que as coisas acontecem, os mundos são criados.

“E o que é um professor, na ordem das coisas”? 

Talvez que um professor seja um funcionário das instituições que gerenciam lagoas e charcos, especialista em reprodução, peça num aparelho ideológico de Estado. Um educador, ao contrário, é um fundador de mundos, mediador de esperanças, pastor de projetos.

Não sei como preparar o educador. Talvez que isto não seja nem necessário, nem possível … É necessário acordá-lo. E aí aprenderemos que educadores não se extinguiram como tropeiros e caixeiros. Porque, talvez, nem tropeiros nem caixeiros tenham  desaparecido, mas  permaneçam como  memórias de um passado que está mais próximo do nosso futuro que o ontem. Basta que os  chamemos do seu sono, por um ato de amor e coragem. E talvez, acordados, repetirão o milagre da instauração de novos mundos.

Texto extraído do livro Conversas com quem gosta de ensinar – Rubem Alves – Cortez Editora

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