Sobre Bruxas e Bichos-Papões

Selma H. Fraiberg

Uma fábula:

“Era uma vez um menino chamado Frankie que seria o modelo exato de uma criança moderna e cientificamente educada. Seu pai e sua mãe consultaram tudo o que os especialistas escreveram, freqüentaram ciclos de conferências e adestraram-se em todos os rituais e costumes sobre educação infantil consagrados atualmente. Ambos sabiam como as crianças desenvolviam os temores e os medos na primeira infância e, com as melhores intenções do mundo, começaram a educar uma criança que deveria ser livre – oh!, tão livre quanto pode ser qualquer criança neste nosso mundo – da ansiedade e das tendências angustiantes.
Frankie foi, assim, alimentado no seio, desmamado e aprendeu a evacuar no lugar certo nas idades adequadas e da maneira certa. Arranjaram-lhe uma irmãzinha, tendo antes calculado a melhor época do seu desenvolvimento para evitar traumas. Nem é preciso dizer que ele foi preparado para a chegada do novo bebê de acordo com as técnicas aprovadas. Sua educação sexual foi franca e completa.
As possíveis fontes de medo foram localizadas e sistematicamente descontaminadas no programa estabelecido pelos pais de Frankie. As canções de ninar e os contos de fada foram editados e revisados; os ratos e seus rabinhos jamais eram cortados e os bichos-papões, em vez de comerem carne humana, trocavam delicadezas durante o jantar. As bruxas e malfeitores praticavam formas de feitiçaria inofensivas e corrigiam-se facilmente com uma penalidade leve ou com uma censura branda. Ninguém morria no mundo dos contos de fada e ninguém morria no mundo de Frankie. Quando o periquito de Frankie foi atacado por uma doença fatal, removeu-se o cadáver e instalou-se um sucessor antes que Frankie acordasse da sua sesta vespertina. Com todas essas precauções, os pais de Frankie acharam difícil explicar porque Frankie haveria de ter qualquer tipo de medo. Mas ele tinha.
Com dois anos de idade, quando muitas crianças têm medo de serem tragadas pelo ralo da banheira, Frankie (de maneira bem independente e sem a influência de colegas desobedientes) começou a ter medo de escorregar pelo ralo da banheira abaixo.
Apesar de todos os preparativos cuidadosos para o novo bebê, ele não ficou entusiasmado com sua chegada e tratou de organizar as tramas menos fraternais para se livrar da irmãzinha. Uma de suas sugestões mais caridosas era que o bebê fosse levado de volta para uma loja do tipo “bazar”.
E a coisa não parou aí. Numa idade em que outras crianças acordam com pesadelos, Frankie também acordou com pesadelos. Inexplicavelmente (porque você sabe como os bichos-papões foram corrigidos no quarto de Frankie), em seus pesadelos Frankie era perseguido por um gigante que queria devorá-lo. E tem mais ainda, apesar das bruxas terem recebido um tratamento clemente na educação de Frankie, quando inventava histórias, ele se utilizava dos malfeitores como bem entendia. Em suas histórias, Frankie se livrava das bruxas cortando suas cabeças.
O que significa essa fábula moderna ? O que é que ela prova ? Será que não interessa a maneira pela qual educamos uma criança? Os temas favoritos da moderna educação infantil constituem um delírio do cientista? Será que deveríamos pôr de lado tudo o que acreditamos sobre alimentação, ensino da higiene e educação sexual, como questões sem qualquer valor na promoção da saúde mental?
A sabedoria e compreensão dos pais na orientação da alimentação, treino da higiene, educação sexual e disciplina favorecem o desenvolvimento saudável da criança, ao incentivarem seu amor e confiança nos pais e aos reforçarem suas aptidões pessoais pela coordenação dos seus impulsos e necessidades corpóreas. Mas o treinamento precoce mais perfeito não elimina toda a ansiedade ou afasta os riscos que existem por toda parte no mundo infantil e até mesmo no próprio processo de desenvolvimento.
Não devemos ficar chocados – porque é impossível educar as crianças sem que elas sintam ansiedade. Cada estágio do desenvolvimento humano tem suas próprias casualidades, seus próprios riscos. Veremos, mais adiante, que nem sempre ajudamos o desenvolvimento da criança, protegendo, cuidadosamente, o meio em que ela vive dos duendes, bichos-papões e periquitos mortos. Não podemos evitar muito desses medos. Nem precisamos fazê-lo. É claro que não expomos, deliberadamente, as crianças a experiências assustadoras e não devemos dar consistência à idéia de duendes comportando-nos como duendes, mas quando os duendes, bichos-papões e periquitos mortos aparecem, em geral é melhor lidar abertamente com os mesmos e ajudar a criança a lidar com eles da mesma maneira.
Em nossa história, Frankie não deve ser considerado uma criança problema ou medrosa – não com base nesta evidência. Ele tem medo do ralo da banheira ? Muitas crianças de dois anos sentem o mesmo medo.

Não é, necessariamente, um mau sinal. Ele teve pesadelos com um gigante? Eventualmente, quase todas as crianças em idade pré-escolar têm sonhos angustiados desse tipo. Ele não gosta da irmãzinha recém-nascida, apesar de ter sido bem preparado para a chegada desse bebê ? A preparação para a chegada de um novo bebê é fundamental e facilita muito as coisas, mas não há explicação preliminar que possa preparar adequadamente uma criança para aquele bebê real e para a experiência real de compartilhar o amor dos pais.
Não é o ralo da banheira, o sonho sobre o gigante ou a chegada inoportuna de um irmão que dá origem a um problema. A futura saúde mental da criança não depende da presença ou ausência de bichos-papões em sua fantasia, nem depende de questões delicadas como a alimentação dos bichos-papões – talvez nem mesmo do número e da freqüência da aparição de bichos-papões. O desenvolvimento saudável da criança vai depender da solução que a criança der ao problema do bicho-papão.
É a maneira pela qual a criança lida com seus medos irracionais que vai determinar o efeito desses no desenvolvimento da sua personalidade. E, normalmente, a criança supera seus medos irracionais. Aqui nos defrontamos com a mais fascinante pergunta entre todas as que se apresentam nesse campo: Como é que a criança consegue isso? É que a criança dispõe de meios para superar seus medos. Já no segundo ano de idade possui um sistema mental complexo e maravilhoso, que fornece os meios para antecipar o perigo, calcular o perigo, defender-se do perigo e superá-lo. O êxito da criança no emprego desse mecanismo para superar seus medos vai depender, é claro, dos pais, que de certa maneira, vão ensiná-la a fazer uso desse mecanismo. Isso quer dizer que, se compreendermos o modo de ser da criança em desenvolvimento e aquelas partes da sua personalidade que trabalham para a solução e fortalecimento em direção ao desenvolvimento, estamos bem situados para ajudá-la a desenvolver seus recursos internos para lidar com seus temores.
Muito antes da criança desenvolver seus recursos internos para superar os perigos, ela depende de seus pais para satisfazer suas necessidades, para aliviá-las da tensão, para antecipar o perigo e para afastar a causa de uma perturbação. Essa é uma situação do bebê. Para o bebê e para a criança muito pequena, os pais são seres muito poderosos, personagens mágicas que adivinham desejos secretos, satisfazem os anseios mais profundos e executam façanhas miraculosas.
Sabemos que o bebê e a criança muito pequena precisam sentir que podem contar com esses seres poderosos para aliviar a tensão e suavizar os temores. E sabemos que a capacidade que a criança terá, mais tarde, para tolerar a tensão e lidar eficazmente com situações de ansiedade será, em boa parte, determinada pelas experiências dos primeiros anos. Aos poucos, à medida que se desenvolve, a criança adquire mecanismos próprios para lidar com situações cada vez mais complexas. O pai e a mãe, gradualmente, vão renunciando à sua função de isolador e protetor. Mas sabemos que até mesmo as crianças mais independentes vão precisar recorrer à proteção dos pais em momentos de medo.
No mundo da criança, uma fada boa é transformada facilmente em bruxa, o leão camarada se transforma num animal feroz, e o rei benevolente se torna um monstro e sabemos que o paraíso da primeira infância é, periodicamente, invadido por personagens sombrias e sinistras. Não é fácil identificar essas personagens noturnas no mundo interno da criança com as pessoas e fatos reais da vida infantil.
Não há jeito de uma criança poder evitar a ansiedade. Se abolíssemos todas as bruxas e bichos-papões das histórias que são contadas na hora de dormir, e se livrássemos seu dia-a-dia de toda possibilidade de perigo, ainda assim ela conseguiria estruturar seus próprios monstros imaginários, tirando-os dos conflitos da sua vida infantil. Não precisamos alarmar-mos com a presença do medo da vida da criança pequena, se ela tem meios para superá-los.

“Há sempre lobos em torno de nós … Não é protegendo as crianças, mas, pelo contrário, expondo-as progressivamente à vida, é que vamos fazer delas adultos equilibrados” François Ruy Vidal

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