Um Faz de Conta pra Lá de Sério

Beth Caló

Era uma vez um tempo em que as crianças quase não ouviam mais histórias. Nessa época, os pais viviam muito preocupados com seus próprios fantasmas e se esqueciam de falar a elas sobre bruxas, feiticeiras, fadas, monstros e príncipes. Os meninos e meninas – espertos como são – sabiam que eles existiam, mas tinham medo de percorrer sozinhos os caminhos da terra do faz-de-conta. Pai e mãe, é claro, são fundamentais nessa aventura. Eles, somente eles, poderiam guiá-los com segurança floresta adentro, mostrando-lhes as armas para vencer o Mal. Mas os pais estavam adormecidos… Então, muito tristes, as crianças ficavam imaginando o dia em que a fantasia viesse acordá-los, ou a emoção pudesse libertá-los. Aí, sim. Todos seriam felizes para sempre.
Podia ser só mais uma história de faz-de-conta, mas não é. Infelizmente, é nesse tempo e lugar “fictícios” que vivem muitas crianças. Talvez as suas, a de seus amigos, seus vizinhos, todas aquelas cujos pais esqueceram – ou não sabem – que a magia é fundamental para o desenvolvimento do homem. Num mundo infantil povoado por robôs, computadores, videogames e brinquedos high-tec, ainda são as fadas, as bruxas e os príncipes que garantem maior equilíbrio emocional às crianças. Não qualquer fada ou bruxa e sim aquelas mais presentes nas histórias mais antigas, passadas de pai para filho através dos séculos. Aqueles que fazem parte dos chamados contos de fadas. Chapeuzinho Vermelho, Rapunzel, Cinderela, Lobo-Mau e todos os seus companheiros de estrada continuam sendo, dizem os especialistas, as armas mais eficazes contra as angústias e temores infantis. Eles, quando apresentados e conduzidos pelos pais, podem ajudar a construir um ser humano melhor, mais esperançoso, confiante e otimista com a vida. Os estudiosos garantem: essa fantasia é fundamental para o crescimento, uma vez que leva a criança a desbravar com mais coragem os caminhos da emoção e do intelecto.
Contar histórias, qualquer história, sempre foi muito importante pois, acima de tudo, promove um estreitamento da relação pais e filhos de uma maneira singular, lúdica e sensível. Mas por que os contos de fadas – tão antigos … – têm um valor especial? Em primeiro lugar por suas qualidades literárias. Como diz o psicanalista Bruno Bettelheim “eles não teriam um impacto psicológico se não fossem, antes de tudo, uma obra de arte”. Em segundo lugar porque seus enredos são espelhos das realidades internas humanas e falam de sentimentos comuns como amor, ódio, inveja, ciúme, ambição, rejeição e frustração. Estes sentimentos, principalmente nas crianças, só podem ser compreendidos e elaborados através da fantasia e das emoções. Por isso, os contos funcionam para elas como instrumento para a descoberta de sua identidade. Além disso promovem uma benéfica catarse para as piores angústias.
“O conflito entre o Bem e o Mal corresponde a uma estrutura mental infantil”, explica a psicoterapeuta Heloisa Marton, membro da Diretoria do Centro de Estudos da Relação Mãe, Bebê e Família. “A criança não está preparada para ambigüidades, por isso não aceita ter sentimentos negativos em relação à pessoa que ama. A mãe que a satisfaz, por exemplo, é a mesma que a frustra quando não atende a seus desejos. A frustração leva à raiva, e a raiva pela mãe gera angústia. A criança não consegue conceber como uma pessoa pode ser boa e má ao mesmo tempo. Sua organização mental faz com que ela separe esssas duas vivências em mãe boa e mãe má. Essa polarização aparece nos contos populares por meio da fada e da bruxa, da madastra e da mãe boazinha que morreu”, exemplifica a terapeuta.
A estrutura fixa das histórias também facilita a identificação da criança com os problemas dos personagens permitindo que ela se entregue ao jogo do faz-de-conta e expresse suas emoções. Os contos mantém uma identificação deliberada de tempo e espaço – “Aconteceu num reino distante…”, “Era uma época que nós não conhecemos…” etc. Também quase nunca usam nomes próprios – referem-se aos personagens como o rei, a rainha, a menina, a princesa ou os apresenta por seus apelidos: Chapeuzinho Vermelho, Gata Borralheira, Cinderela etc.
Todos começam de maneira simples e partem de um problema ligado à realidade – como a carência afetiva de Cinderela, a pobreza de João e Maria ou o conflito entre mãe e filha em Branca de Neve. Desenvolvem-se com a busca de soluções – onde entram os personagens “mágicos” (fadas, anões, bruxas malvadas). E fecham a narrativa com uma volta à realidade – os heróis se casam ou retornam ao lar.
Segundo Bettelheim os contos apontam sempre uma solução feliz, mas indicam também que para alcançá-la são necessárias transformações interiores – João e Maria têm que usar inteligência e astúcia para vencer a bruxa, Branca de Neve embrenha-se pela floresta (símbolo do inconsciente) até encontrar aconchego na casa dos anões e a Bela Adormecida espera cem anos para ser feliz. O que salva o herói é seu amadurecimento, e este sempre acontece fora da casa paterna. A mensagem oculta é a de que precisamos de nossos pais mas, para crescer, temos que nos libertar de sua dependência. O psicanalista americano destaca ainda outros “ensinamentos” proporcionados por essas histórias: as dificuldades existem mas podem ser vencidas; não se pode esperar sucesso apenas numa primeira tentativa; precisamos estar dispostos a algumas frustrações para ganhar recompensas duradouras , a dor tem de ser suportada e temos que enfrentar riscos; não podemos fazer tudo sozinhos e necessitamos de outros que nos ajudem. O consolo vem no final: apesar dos obstáculos, o Bem sempre vence.
Heloisa Marton assinala que os contos são uma maneira simbólica de resolver conflitos. Izabel Kan, psicanalista e professora de Psicologia da PUC – SP, lembra que a criança ao ouví-los ensaia papéis e sabe que para encontrar uma solução no enredo o herói terá que passar por renúncia, espera, vencer desafios até descobrir, enfim, os caminhos do amadurecimento. Ambas concordam que os benefícios que trazem essas histórias são inúmeros e as crianças, segundo elas, sabem entregar-se ao prazer dessas aventuras sem confundir, em nenhum momento, fantasia com realidade. A principal dificuldade, dizem elas, está nos pais. “É difícil para eles perceber a intensidade das emoções das crianças, que são de amor ou ódio”, explica Izabel. “Muito pai e mãe se recusam a agüentar a angústia do filho e não compreendem por que ele se identifica, de vez em quando, com o lobo-mau ou com a bruxa”, reforça Heloisa. Nesta questão Bettelheim é impiedoso: “Os pais se perturbam quando percebem que a mente da criança não está só cheia de amor profundo por eles, mas também de um forte ódio”.
Tatiana Belinky, escritora, pesquisadora e uma das maiores tradutoras das histórias de Grimm e Perrault no Brasil, lembra que, quando criança, se identificava mais com as bruxas e com as madrastas. “Meu marido, que além de escritor era psicanalista, costumava dizer que os contos de fadas são uma espécie de treino da musculatura emocional”, diz. Ela fica indignada com a postura de alguns pais e educadores que acham esses contos violentos e se amedrontam por um possível trauma que possam causar às crianças. “Trauma é apanhar ou assistir a brigas entre pai e mãe”, rebate a sábia escritora.
Os contos de fadas também são usados fora do ambiente familiar como recurso pedagógico ou terapêutico. As psicopedagogas Sarah Cunha Lima, Maria Antônia Magalhães e Célia Godoy os utilizam com freqüência. “A função de se contar essas histórias numa escola é mostrar à criança a estrutura narrativa, a unicidade dessas histórias. O encantamento, o lado mágico, facilita a compreensão”, explicam. Izabel Kan também lança mão desse recurso no seu trabalho com estagiários em creches, escolas e, principalmente, em unidades da Febem. “Nessas instituições as crianças, muitas vezes, estão alienadas de sua história e da história de seus pais. Por isso pensam, com freqüência, que foram abandonadas porque foram más. Por meio de um conto como o de João e Maria, por exemplo, elas se identificam, falam sobre suas vidas e expressam suas angústias”, conta.
Liliana Iacocca, escritora e membro da Associação dos Profissionais de Literatura Infanto-Juvenil, já assistiu à experiências comoventes proporcionadas pelos contos de fadas: em favelas, com meninos de rua na praça da Sé ou numa unidade para crianças do Hospital do Câncer. “Em algumas sessões de quimioterapia pedia-se às mães, geralmente muito pobres, que dessem as mãos aos seus filhos e lhes contassem contos de fadas. Elas, mais do que as crianças, comoviam-se e tinham crises violentas de choro ao contar as histórias. Naquele momento elas não falavam de sua violência cotidiana e viviam emoções que até então desconheciam. Por isso choravam”, lembra a escritora.
Para Liliana, contar histórias é um hábito que deve ser praticado na escola e principalmente pela família. “Os pais precisam retomar suas tarefas de educadores, retomar os seu compromisso para com o desenvolvimento da criança. É preciso ensinar às crianças como ler o mundo, as pessoas, a vida”, adverte. “Podemos criar uma geração verdadeira, mais sensível. Mas, se deixarmos essas crianças apenas por conta dos meios de comunicação, provavelmente estaremos criando mais uma geração insegura e perdida”.

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